quinta-feira, 6 de março de 2014

QUE DEUS NOS AJUDE A LIVRAR PESSOAS DESSA TRÁGICA SUTUAÇÃO..

Viagem perigosa

SAÚDEMarcos De Benedicto
Em um comentado filme de 2000 intitulado Traffic, vencedor de quatro Oscars, Steven Soderbergh pinta um quadro realista e complexo do mundo das drogas. O thriller, repleto de intrigas e tensão, envolve três histórias paralelas. Num plano, o juiz Robert Wakefield (Michael Douglas), que combate as drogas nos Estados Unidos, descobre que sua filha adolescente (Erika Christensen) é viciada em heroína. Sua mulher (Amy Irving) confessa que experimentou todo tipo de droga na época da faculdade. Virando a câmera para o México, na fronteira, o honesto guarda Javier Rodriguez (Benicio Del Toro) luta para não ser envolvido na teia de corrupção que chega até um general. Em San Diego, o rico traficante Carlos Ayala (Steven Bauer) é preso numa operação secreta da polícia. Sua mulher Helena (Catherine Zeta-Jones), grávida e perplexa com a descoberta das atividades ilegais do marido, busca a ajuda de um advogado (Dennis Quaid) para tocar a vida.

O filme é, em certo sentido, um espelho da situação do planeta. Mostra narcotráfico, corrupção, consumo de drogas e problemas familiares. Realmente, vivemos numa sociedade viciada. O número de usuários de drogas ilícitas no mundo chega a 200 milhões, sendo 163 milhões de maconha, 34 milhões de anfetaminas, 15 milhões de opiáceos e 14 milhões de cocaína. Muitos usam mais de uma droga ao mesmo tempo. Cerca de 20% da população mundial usam substâncias psicoativas no decorrer da vida; 15% têm dependência química; 15% dos dependentes químicos cometem suicídio (porcentagem 20 vezes maior que a da população em geral).

Cerca de 7 milhões de pessoas morrem por ano no mundo devido ao uso de drogas, incluindo as duas mais populares: álcool e tabaco. Só nos Estados Unidos, 150 mil pessoas morrem anualmente por problemas ligados ao alcoolismo.

No Brasil, segundo um estudo feito para a Secretaria Nacional Antidrogas, mais de 9 milhões de pessoas (quase 20% da população) já experimentaram algum tipo de droga, não contando álcool e cigarro. Cerca de 11% da população brasileira é dependente de bebidas alcóolicas, 9% de tabaco e 1% de maconha. Outra pesquisa revelou que 587 mil adolescentes entre 12 e 17 anos são dependentes do álcool e 49 mil, de maconha. Um levantamento realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, em 1997, indicou que 51% dos adolescentes do país entre 10 e 12 anos de idade já tinham consumido bebidas alcoólicas; 11%, tabaco; 7,8%, solventes; 2%, ansiolíticos; e 1,8%, anfetamínicos.

Na verdade, desde tempos imemoriais, a humanidade consome drogas. Um jarro de cerâmica descoberto no Irã contendo resíduos de vinho resinado sugere que 5 mil anos antes de Cristo já havia produção de bebida alcoólica. Em 4000 a.C., os chineses provavelmente já usassem maconha. Em 3500 a.C., os sumérios, na Mesopotâmia, eram viciados em ópio. Eles chamavam a papoula de “flor do prazer”. E, por volta do ano 3000 a.C., os povos da América do Sul mastigavam suas folhinhas de coca numa boa, considerando a coca um presente dos deuses.

Mas talvez nunca tenha havido tanta gente viciada como agora. O pior é que o problema está se agravando, apesar do acúmulo de conhecimento científico evidenciando os males causados pelas drogas. O sonho da ONU de livrar o mundo do problema até 2008, conforme expresso durante uma assembléia especial sobre drogas em 1998, mostrou-se totalmente irreal.

O mercado de drogas ilegais continua em expansão, apesar do combate governamental de vários países. A área plantada diminuiu, mas a produtividade aumentou. O Afeganistão concentra 76% da produção mundial de papoula (destinada à fabricação de ópio e heroína), enquanto Mianmar detém 18% da produção e Laos, 2%. Infelizmente, a América Latina lidera a produção de cocaína. Entre os grandes produtores da droga, destacam-se a Colômbia, com 72% da produção mundial; o Peru, com 20%; e a Bolívia, com 8%. Em 2002, a produção mundial de cocaína foi de 800 toneladas; e a de heroína, de cerca de 450 toneladas. Essa produção atinge um enorme público consumidor, movimenta montanhas de dinheiro e gera uma guerra global. Europeus e norte-americanos gastam por ano cerca de US$ 80 bilhões para adquirir cocaína e heroína. Se os plantadores recebem pouco, os traficantes têm lucros enormes.

O uso de drogas legais pode não parecer tão assustador quanto o de drogas ilegais, mas não fica atrás no total consumido e em seus efeitos. Afinal, o cigarro é legal e pode ser chamado de matador número 1, o álcool faz parte do ritual destrutivo da maioria dos dependentes químicos e os remédios têm multidões de consumidores. As gerações atuais são viciadas em soluções rápidas. Se dá para tentar resolver o problema com uma pílula, para que mudar o estilo de vida? Por isso, existem pílulas para todos os tipos de males, da dor de cabeça à depressão, da insônia à impotência, da obesidade à hipertensão.

Os países ricos são os mais viciados em pílulas. Estados Unidos, Canadá, Europa e Japão consomem 88% dos remédios. Pelas contas da empresa de consultoria IMS, os americanos e os canadenses, embora representem 5% da população global, engoliram 51% dos remédios vendidos em todo o mundo no ano de 2002. O mercado de medicamentos é estimado hoje em US$ 400 bilhões ao ano.

Variedade 

Mas o que é mesmo droga? A droga pode ser definida como qualquer substância, natural ou sintética, que modifica as funções do organismo e é usada como um atalho ilusório para a obtenção da sensação de prazer e felicidade, escravizando o usuário. Note que essa definição inclui três aspectos básicos: (1) o poder intrínseco da substância, (2) a busca sensorial da pessoa e (3) o padrão estabelecido entre a pessoa e a droga.

As drogas naturais vêm de vegetais, animais ou minerais. É o caso dos cogumelos e da trombeteira, que possuem princípios psicoativos. As drogas sintéticas, como o LSD (ácido lisérgico) e o ecstasy, têm uma origem diferente. Sua matéria-prima é fabricada em laboratório. Certas drogas, como o álcool, a cocaína, a maconha e o tabaco, podem ser classificadas como semi-naturais ou semi-sintéticas, pois resultam de reações químicas em laboratório com base em substâncias naturais.

A idéia de que as drogas sintéticas, como o ecstasy, são menos perigosas não passa de mito. O princípio ativo do ecstasy, uma anfetamina modificada, foi registrado pela indústria farmacêutica alemã Merck em 1912. Porém, a droga só ganhou popularidade a partir da década de 1970. Hoje virou moda nas pistas de danças. É uma droga grupal. Por incrível que pareça, 65% dos usuários de ecstasy acham que ele é seguro. A verdade é que o ecstasy pode não matar subitamente, mas, a longo prazo ou combinado com outras drogas, tem um efeito mortal. Ele não causa apenas euforia, sensação de bem-estar, perda da timidez, sentidos aguçados e aumento da resistência física. Pode também provocar alucinações, percepção distorcida de sons e imagens, desidratação, ansiedade, pânico e delírios.

Há um monte de substâncias classificadas como drogas. Entram nessa categoria o álcool, os anabolizantes, as anfetaminas, a ayahuasca, a cafeína, a cocaína, os cogumelos, o crack, o DMT, o ecstasy, o GHB, o haxixe, a heroína, o ice, os inalantes, a ketamina, o LSD, a maconha, a nicotina, a merla, o ópio, o PCP e o skunk, para citar as mais comuns. O termo droga inclui analgésicos, alucinógenos, barbitúricos, estimulantes, psicotrópicos e tranquilizantes, entre outras substâncias. As drogas, lícitas ou ilícitas, podem ser depressoras, diminuindo o ritmo das atividades cerebrais (por exemplo, álcool, tranquilizantes e opióides); estimulantes, acelerando o processo cerebral e as atividades corporais (por exemplo, cocaína, nicotina e cafeína); e alucinógenas, alterando a percepção de espaço e tempo (por exemplo, maconha, LSD e mescalina).

Algumas drogas só continuam sendo consideradas lícitas por causa de fatores sociais, culturais ou econômicos. Os casos do álcool e do tabaco são típicos. Ambos, especialmente o álcool, têm uma longa história e fazem parte da vida (ou da morte) de milhões de pessoas. A cafeína, embora seja um forte estimulante, às vezes nem é considerada droga. Além da tradição cultural de tomar café, pesa aí o interesse econômico, se bem que não se deve esquecer de que a cafeína é matéria-prima importante na fabricação de medicamentos.

O caso da ayahuasca, cujo uso na bacia amazônica talvez remonte a uns 2.000 anos a.C., também é interessante. Conhecida em diferentes culturas por yajé, caapi, natema, pindé, kahi, mihi, dápa, bejuco de oro, vine of gold, vine of the spirits, vine of the soul, hoasca, chá do Santo Daime ou vegetal, a droga alucinógina é tomada na forma de chá. Por isso, o seu uso para fins religiosos é protegido por lei. A bebida, porém, provoca alucinações, alterações no processo de pensamento e da memória, mudança na percepção corporal, náuseas, vômitos, diarréia, aumento da pressão arterial, incoordenação motora, prostração e sonolência. Se não fossem os fatores culturais, é de se duvidar que os sentimentos de rejuvenescimento e a sensação de inefabilidade e de contato com locais e seres sobrenaturais causados pela droga justificariam a sua legalidade.

As drogas podem ser usadas de várias formas, como injeção, inalação, via oral e via retal (supositório). Os efeitos também variam conforme a pessoa, o tipo de droga, a dosagem e as circunstâncias do uso. Mas a maioria afeta o cérebro e o sistema nervoso, modificando as atividades psíquicas, a atitude e o comportamento.

Prazer escravizante

Muitos fatores podem levar ao consumo de drogas. Entre eles, estão a curiosidade, a pressão dos amigos, a busca da identidade grupal, a imitação dos pais, o acesso fácil, um histórico de uso de drogas mais leves, problemas de integração da personalidade, a negação do eu, um ambiente hostil, a fuga da tensão e da realidade, o desejo de melhorar a performance, a tentativa de bloqueio da dor emocional, a busca de sentido existencial numa sociedade consumista e vazia espiritualmente, a fronteira tênue entre remédio e droga, a divulgação do vício como prática normal pela mídia, a glamourização das drogas pelo cinema e a TV. Às vezes, a adição ocorre por uma combinação de fatores.

Um dos trunfos da droga é o prazer. Ela ativa as células cerebrais e põe em ação o sistema de recompensa, em que o dependente sempre recorre à droga para se sentir bem. Se a droga não oferecesse nada agradável, não atrairia tanta gente. O problema é que o prazer inicial logo se transforma em dor, a liberdade de experimentar torna-se escravidão para consumir, a viagem vira pesadelo. A pessoa tenta se libertar, mas não consegue. Ela vira “drogadicta” ou toxicômana.

A toxicomania é caracterizada por um desejo forte ou mesmo irresistível de usar droga, a tendência a aumentar a dose e a dependência de ordem psíquica. A pessoa vive para a recompensa, ainda que a recompensa vá destruí-la. Pesquisas recentes sugerem que todo tipo de dependência, incluindo a compulsão por jogo, sexo, internet, trabalho, compras ou comida, pode ter um processo parecido de desenvolvimento em áreas específicas do cérebro.

Sempre envolventes, as drogas podem causar até codependência, uma doença emocional que atinge muitas pessoas do círculo dos dependentes químicos, alterando sua rotina, seu comportamento e sua postura diante da vida. Os codependentes praticamente se anulam. Vivem em função dos outros, na tentativa de salvá-los de sua trajetória destrutiva.

Liberdade possível

Libertar-se das drogas não é tarefa fácil, mas é possível. Para o psiquiatra argentino Eduardo Kalina, que já tratou de dependentes químicos famosos como a atriz Vera Fischer e o ex-jogador Diego Maradona, o cérebro nunca esquece a sensação provocada pela droga. Por isso, o dependente químico deve praticar a abstinência total e radical de todo tipo de drogas, inclusive álcool e cigarro. Um gole ou tragada pode abrir “a memória biológica” e acordar o desejo. “Há cura se você aceita seus limites", sublinha o psiquiatra.

Os especialistas costumam frisar que não existe meia dependência. A idéia de fumar apenas um, ou aspirar apenas uma vez, é ilusão. A pessoa nunca consegue se controlar quando está em contato com a droga. Ela perde o senso de perigo, de realidade e mesmo de responsabilidade. O imediatismo da compulsão por uma resposta química torna-se mais importante do que a decisão de seguir valores espirituais.

Se a dependência fosse apenas química, seria mais fácil. Porém, a dependência é igualmente psíquica e até mesmo social. Tudo isso deve ser levado em conta na hora de buscar o tratamento. Numa entrevista para a revista Veja (edição de 8 de setembro de 2004), o psiquiatra grego Petros Levounis, conceituado especialista em dependência que recentemente assumiu a direção do Addiction Institute of New York, frisou que “a melhor maneira de entender o vício é por meio dos modelos biológico, psicológico e social”. Cada um desses aspectos deve ser avaliado e tratado.

“O caminho que se tem revelado mais eficaz é o de combinar procedimentos que contemplem os três modelos”, explica o médico. “O paciente reage melhor quando indicamos a psicoterapia, usamos medicamentos para tratar a ansiedade e a depressão e, ao mesmo tempo, envolvemos a família (o aspecto social do tratamento).” Ninguém deve se esquecer também do aspecto espiritual. Só Deus pode dar pleno sentido à vida, oferecer ajuda efetiva e trazer liberdade real.

Perfil do usuário

Pesquisa do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) revela que o dependente típico de drogas em São Paulo é branco, solteiro, faz uso de maconha e cocaína no mesmo dia, tem 19 a 30 anos e está desempregado. O traficante também é branco e jovem; 77% deles são da Região Sudeste, 71,42% têm ensino fundamental, 97% são brasileiros e 3% estrangeiros.

O perfil do drogado e do traficante foi elaborado a partir de 3.115 entrevistas com pessoas atendidas pela Divisão de Prevenção e Educação e da prisão de 3.242 pessoas, vendendo ou usando drogas, nos dois últimos anos. Dos 3.115 entrevistados, 89% dos homens e 11% das mulheres são dependentes de algum tipo de droga. Na faixa etária até 15 anos, 23% são dependentes. O trabalho revelou ainda que, entre os homens, a cocaína é a mais usada. Entre as mulheres, a maconha.
Fonte: O Estado de S. Paulo

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